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"Se o rio Muriaé falasse...", por Laércio Andrade

Crônica

Anteontem, fui estuprado em meu leito por mais um caminhão de entulho,
e meus defensores nada fizeram!...
Ontem fui agredido com muitos cestos de lixo.
Hoje roubaram mais areia, fruto de meu paciente trabalho de longos anos...
Envenenaram recentemente meu corpo, poluindo todo o meu ser com mercúrio
de uma aurífera e perdulária ganância!
Encontrei, temporariamente, um defensor que os homens chamam de Ministério
Público, que evitou minha liquidação rápida e de meu amigo Itabapoana,
expulsando garimpeiros violadores.
Traficaram com as terras de minha margem!
Isso tudo sem falar no quase centenário despejo de dejetos (esgotos, lamas,
subprodutos de indústrias, pústulas de hospitais e animais putrefatos), que
suporto em nome do “progresso” das cidades que banho. Uma (Muriaé) tem
até meu nome; outra (Laje do Muriaé) me imita.
Muros, pontes e construções me desafiam cotidianamente.
Às vezes penso porque fazem isso comigo, se trago VIDA, ofertando água de
meu corpo e alimentação para muita gente ingrata (maus pescadores!) que
matam meus amigos peixinhos com bombas e arapucas infernais.
Até gases já usam!...
Que seriam desses “caras” sem mim? Será que não manjam isso? Ou é a suprema
ignorância dos ignorantes?...
Quando me alio às chuvas e me revolto em forma de enchentes, vejo assacadas
contra mim toda espécie de calúnias, injúrias e difamações possíveis.
Sirvo, nessas épocas, de bode expiatório para gastarem mais verbas públicas
nas “calamidades” com “minha agressão”, quando o objetivo é apenas limpar
meu leito.
Sou obrigado a ouvir besteiras como:
“É preciso fazer um dique neste rio!”
“É necessário diminuir-lhe o leito e murar-lhe as margens!”
“Por que não rebaixam esse rio para mais facilmente ser dominado?”
“Tirem-lhe as ilhas!...”
Tudo isso para uma solução tão fácil: bastaria o respeito mútuo. Eu correria
pelos caminhos que a natureza me deu ofertando tudo que tenho, sem nada
pedir de volta.
Já repararam que caminho sempre em frente ?
(Interessante)! Sujam-me as águas e depois gastam grandes somas de dinheiro
para depurá-las.
Não me dão direito nem a legítima defesa da VIDA! Quero um júri verdadeiramente
popular!
Pessoas, presumivelmente cultas, me enaltecem de manhã e me violam à noite.
Dupla personalidade humana!
Grossa hipocrisia tenho que assistir!...
Até o chamado poder público cria “amigos” para mim com nomes esquisitos
de “CECA”, “SERLA”, DE “FEEMA” etc. para me “proteger”, mas pouco
fazem por mim.
Crio até problema jurídico. Até hoje não sei se sou Federal, Estadual ou
Municipal.
Cada órgão me rejeita à medida que protesto e peço proteção.
Por tudo isso não queria ser “inanimado”, como dizem os homens que me
circundam!...
Tenho mais vida e mais inteligência e sou mais compreensivo com eles do
que eles comigo e com suas próximas gerações.
Corro para o mar, que é grande! As pessoas fazem coisas pequenas!...
Estou certo de que para mim só me restam poucos anos de vida...
Morrer a cada minuto, a cada hora, a cada dia, a cada mês, a cada ano é o
meu derradeiro destino, definhando o meu corpo pela “AIDS” que o “progresso”
da cidade me transmitiu, enfraquecendo progressivamente meu corpo
e minha alma. Só que minha morte “provocada” trará outras mortes: a dos
peixinhos que tanto amo; das flores deslumbrantes que rego; da relva que me
acolhe e me conforta; dos pássaros que saciam sua sede em minhas águas!...
Minha suprema vingança será no dia em que eu faltar. Então, sedentos, muitos
“seres animados” pouco durarão.
Mas restará, certamente, minha amiga chuva (mesmo um pouco ácida!), para
escrever o meu epitáfio no cemitério pedregoso e fétido, povoado de outras
aves de rapina:
“DEU VIDA A QUEM SÓ TRABALHOU PELA SUA MORTE”.

(Homenagem crítica de um itaperunense ao meio ambiente, aos rios brasileiros,
e, em particular, ao rio Muriaé, que banha Itaperuna-RJ).
Itaperuna, fevereiro, 1988.

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